segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Vida

Vai-se o corpo e ficam as lembranças, os descendentes, as fotos e a eterna saudade. Não sei onde tudo começa nem como tudo termina, porque não é possível que tudo se acabe ali, num último suspiro...
Hoje foi-se a velhinha mais linda, a dona de histórias intermináveis e cheias de detalhes, que tantas vezes me acolheu naquela casa antiga quando era criança, que me emprestava seus botões de costura, seus vestidos, suas bolsas e pó de arroz para as mais incríveis brincadeiras. Cozinheira do melhor macarrão com brócolis, do mais saboroso bife de carne moída e até então a única detentora da receita do crustili de todo final de Carnaval. Vai-se essa senhora de fé incomparável, de espiritualidade consagrada, da bondade mais pura, protagonista de uma história de força de uma época quando mães solteiras eram chamadas de puta mas que driblou os fantasmas e vestiu o véu de santa. E esta noite, no caixão, ela parecia com a imagem de Nossa Senhora que tantas vezes recebeu em seu lar, abençoado com todas as graças.
Eu disse tchau, apenas, pois ontem ainda não estava preparada para dizer adeus. "Eu volto amanhã, hein!". Mas ao voltar, me jogaram nas mãos a notícia de que ela não estava mais no meio de nós. Ela morreu sozinha num leito de uma UTI devido à burocracia de um hospital arcaico que permite visitas apenas das 16 às 17:30h. Não consegui dizer muita coisa naqueles quinze ou vinte minutos em que estive com ela pela última vez e nem pude compreender tudo do pouco que ela dizia. A máscara de ôxigênio atrapalhava tanta coisa... Afofei-lhe os cabelos... Tive vontade de levar a pinça para fazer sua sobrancelha como há anos fazia - ela sempre me dava escondido o dinheiro, ou enfiava em meu bolso, como pagamento para "tomar um sorvete". Contei sobre a minha propaganda e ela perguntou em qual horário que passava. Em todos, em todos os canais... "Ê, Tita, eu vou ficar famosa, você vai ver só, jajá eu tô na novela!" e ela esboçou um sorriso e disse "Se Deus quiser!". Ela não tinha mais aquele brilho nos seus olhos azuis... o olhar estava longe... o coração já estava fraco...
Não cheguei a lhe devolver o vestido da Miquelina usado na peça Porca Miséria e nem todos os trecos e cacarecos que compuseram o tradicional cenário ítalo-brasileiro. Eu tinha orgulho de mostrar para meus companheiros de cena a proprietária do figurino e das tralhas da italianada nas tantas vezes em que ela foi me prestigiar no teatro e que gargalhou com as trapalhadas da família Buongermino - mesmo não ouvindo grande parte do que no palco era falado.
"Quem é que vai contar agora as histórias sobre o fulano que era filho do cicrano e casado com beltrana?". Nós! E como não garanto uma memória de elefante como só ela tinha, eu escrevo para que no futuro meus filhos, meus netos - que passei hoje a reconsiderar em um dia tê-los - e quem mais desejar, sintam o sabor que tantas vezes com ela senti, especialmente com suas verídicas histórias de assombração... Dela não tinha como duvidar!
E amanhã me despedirei do corpo, trajado com o vestido de veludo azul e florzinhas bordadas que tantas vezes me enfeitou enquanto bisbilhotava seu armário que cheirava a naftalina... Se viramos pó ou se viramos estrela eu não sei, mas certamente ela fará parte do exército de anjos que nos olham e nos protegem, seja lá de onde viemos, para onde vamos ou onde quer que estejamos. A família perde o seu brasão.